A realidade e as palavras

"Quando te questionarem acerca dAquilo, nada deves negar ou afirmar, pois o que quer que seja negado ou afirmado não é verdadeiro. Como poderá alguém perceber o que Aquilo possa ser enquanto por si mesmo não tiver visto e compreendido? E que palavras poderão então emanar de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece apenas o silêncio. Silêncio... e um dedo apontando o caminho." -Siddhartha Gautama, o Buda






quarta-feira, 16 de agosto de 2017

”NENHUM FLOCO DE NEVE CAI NO LUGAR ERRADO”


A impermanência e transitoriedade é a característica inevitável de todos os estados e experiências. Não existe o estado perpétuo de eterna iluminação e bem-aventurança. Essa é uma ideia errada. Mesmo os mestres que admiramos e reverenciamos não vivem num estado de permanente nirvana e ininterrupta felicidade. Não acredites naquela história em que um autor fala de um passeio na floresta, um maravilhoso contemplar do pôr-do-sol à beira-mar, um acordar após uma noite de angustia existencial ou outra experiência qualquer, em que de repente é atingido pela flecha iluminada do nirvana ou um raio de compreensão súbita que lhe desvenda os segredos do universo, passando então a viver num estado de êxtase iluminado e felicidade permanente. Isso não existe! É apenas um estratagema literário que empresta certo colorido romântico à narração mas sem rigorosa correspondência na realidade.

Essencialmente todos passamos pelas mesmas dúvidas e perplexidades. Julgamo-nos já definitivamente instalados no jardim do Éden e constantemente nos vemos expulsos do paraíso. O jogo da mente é muito subtil. Consideramos um estado ou experiência como o correto ou satisfatório e quando outro estado se nos depara julgamos que há alguma coisa errada. Não há nada de errado se nós assim o não considerarmos! O problema só é criado pelo pensamento que julga, avalia e compara.

Para a nossa natureza original, o nosso ser mais profundo e essencial, não há quaisquer problemas, nem desejos ou aversões. Tudo o que surge é aceite e permitido. Devemos viver as coisas tal como se apresentam. Ninguém tem o controle. Nós nada podemos fazer. O segredo está em não discutirmos, não lutarmos com a vida ou com nós mesmos. Para sermos plenos e completos devemos permitir-nos experimentar tudo. O sábio não é um ser humano perfeito, é um ser humano total!

O desejo por experiências, mesmo as mais nobres e espirituais, é como outro desejo qualquer. Enquanto houver alguém a avaliar e escolher o que é espiritual e não é, a rejeitar uma experiência e a aprovar outra, a perseguir determinados estados particulares que se procuram repetir e capturar, estaremos sob o domínio da ilusão. Quando compreendemos que tudo é impermanente, já nenhum estado tentaremos produzir e nenhuma perturbação evitar, nenhum prazer desejaremos reter, nenhuma experiência conservar!...

Aquilo que realmente somos, a nossa natureza essencial, não tem nada a ver com estados e experiências de índole particular. O nosso Ser está presente em todas as experiências. Quando vivemos desde o nosso estado natural, da pura consciência impessoal que somos, não há desejo, nem esforço, não há rejeição disto a favor daquilo, não há escolha, avaliação ou comparação. Nem sequer há necessidade de palavras a tentar descrever, explicar, definir. Há apenas atenção e silêncio. Apenas disponibilidade e vazio, paz, quietude! E nem mesmo existe alguém para saber disto. Não há ninguém para saber coisa nenhuma. E é maravilhoso e magnífico! Mas não tem nada a ver contigo ou comigo. Nós nada podemos fazer. Nada podemos produzir. É Graça total!

Com a aceitação vem a paz. A constante atividade mental de calcular, julgar, interpretar, resistir é que complica a vida. Tudo flui, nada permanece! A vida é como um rio a correr. Às vezes a água vai mais clara, outras vezes mais turva, às vezes leva alguma sujidade, mas se não a estancarmos, acaba sempre por retornar à pureza original. O importante é não julgarmos que devíamos fazer ou sentir alguma coisa diferente do que fazemos ou sentimos, ou que as coisas deviam ser de outra maneira. Tudo é como deve ser! Tudo está bem como está! Ao longe todos os acidentes se alisam. À distância todos os percalços ganham sentido. Por maior que seja a agitação das ondas, sob uma perspetiva mais ampla o mar é sempre sereno

Como diz o ditado Zen, ”nenhum floco de neve cai no lugar errado”. O fim da dualidade significa o calar daquele comentador cá dentro sempre a emitir juízos e avaliações, a condenar ou a aprovar, a dizer o que é correto e o que não é, o que está bem e o que está mal. Nós somos imensos. Somos maiores do que a mente. Maiores do que qualquer coisa que possamos pensar. Do que isto trata não é de sermos iluminados e perfeitos. Trata-se de sermos íntegros, completos. O importante é aquilo que é real e não o que desejamos ou perseguimos.

 A única coisa a que devemos aspirar é total e completa liberdade. E nunca seremos plenamente livres enquanto houver coisas que perseguimos e coisas que rejeitamos. Nenhuma moeda pode existir com uma única face. Queremos felicidade sem dor, mas não se pode ter um arco-íris sem um pouco de chuva. Por isso sê benevolente contigo próprio. Permite-te ser visitado por todos os anjos e demónios. Mas como recomendava um sábio mestre Zen, simplesmente não lhes sirvas chá. Eles vêm sem que tu os tenhas chamado e partirão do mesmo modo como vieram.

Uma história budista conta que certa vez um rei se dirigiu a um homem sábio para lhe pedir uma fórmula que sintetizasse toda a sua sabedoria. Então o sábio entregou-lhe um anel com um simples aforismo para o rei recordar em todos os seus encontros com a vida. Continha apenas três palavras: “Isto também passará!”. Esta história nada tem a ver com a atitude “new age”, nem é nenhuma apologia do pensamento positivo ou da coragem perante a adversidade. É um convite à descoberta de uma paz e serenidade que subjaz além de todos os estados e circunstâncias. Ao desapego e desidentificação perante todas as situações e experiências, tanto as de dor e sofrimento, como as de êxtase ou iluminação.

domingo, 13 de agosto de 2017

APENAS UM DEDO QUE APONTA


                             "As palavras são como um dedo que aponta.
                             Se fixas o teu olhar no dedo apontador
                             perdes a realidade para a qual ele está a apontar."
                                  -Hui Neng

 Quem tem alguma familiaridade com os textos e autores da "Não-Dualidade" talvez já se tenha deparado com alguma comunicação a atacar ou defender os vícios ou  virtudes do que se convencionou chamar de “Neo-Advaita” em oposição ao “Advaita Tradicional”. Esse é um exercício inútil e estéril. Cada pessoa irá acatar os livros ou tradições que mais ressoarem com a sua própria compreensão. Irá valorizar os mestres e autores que mais a ajudaram a clarificar a sua própria experiência. Cada um faz os seus próprios sublinhados nos livros que lê. O nosso próprio e direto encontro com a realidade é que será sempre o último juiz da verdade. Não precisamos de um guia para caminhar pois nós mesmos já somos a luz que ilumina o caminho.

A preocupação por estar certo e seguro, de estudar a tradição e os mestres corretos, é uma necessidade ilusória. A mente tem horror ao mistério e à incerteza. Mas para quê a necessidade de certezas e garantias, de possuir a filosofia verdadeira, de seguir a tradição correta? Todos os homens verdadeiramente sábios afirmaram a impossibilidade de as palavras poderem expressar adequadamente a verdade. A realidade será sempre infinitamente mais vasta do que quaisquer palavras que nós usemos para a representar ou comunicar. 

Seja qual for a declaração que se faça, podemos sempre encontrar um sentido em que é verdadeira e outro em que é falsa. Tudo depende da nossa perspetiva e do significado que atribuímos às palavras. Qualquer coisa que o pensamento construa, o pensamento pode destruir. Ao nível verbal e intelectual
é sempre possível detetar inconsistências e contradições nos escritos dos grandes mestres do Zen e Advaita, quer sejam antigos ou modernos. Mas para quem vislumbrou, além das palavras, a realidade para que elas apontam, aquelas afirmações aparentemente contraditórias revestem-se de tremenda coerência e harmonia.

O Advaita, tal como o Zen-Budismo ou o Dzogchen, não ambiciona criar nenhum complexo e irrefutável sistema filosófico. Não tem finalidades especulativas mas sim pragmáticas. Nada acrescenta ao nosso acervo intelectual. Modifica a nossa experiência no encontro com a vida. É muito mais um processo de desaprendizagem e esvaziamento do que de aquisição. Através da eliminação de juízos erróneos e falsos conceitos, leva-nos a uma intuição direta da natureza da realidade e da nossa própria essência. Se algum tipo de conhecimento produz, é o mesmo que recomendava Sócrates e se encontra inscrito no átrio do templo de Apolo em Delfos : “Conhece-te a ti mesmo!”

A verdade não pode ser reivindicada por nenhuma espécie de clube privado, intitule-se ele de advaita, neo-advaita ou outro rótulo qualquer. Esse tipo de discussão poderá atrair o académico e o intelectual, mas é completamente desinteressante para o buscador sincero da verdade. Este sabe que a verdade não é posse de nenhum guru, doutrina ou tradição em particular. Não tem um pouso fixo ou morada certa onde devamos ir bater para a encontrar. A verdade vem-nos às vezes sob a forma de um romance, outras vezes de um poema; tanto pode ser encontrada nas páginas de um livro sagrado como nos graffiti das paredes subterrâneas do metro. Ás vezes escutamo-la nas palavras de um profeta, outras vezes nas perguntas de uma criança. Se estamos realmente despertos podemos reconhecê-la até nos sussurros da noite e no murmúrio do vento.

Ninguém possui a verdade, ninguém está na mentira. Há pontos de vista e não verdades absolutas. Fica com aquilo que mais ressoar com a tua própria experiência. Confia na tua própria percepção da realidade. Permanece aberto ao mistério e ao desconhecido. E quando a serenidade do teu espírito for abalada pelas sombras da dúvida e da incerteza, talvez possas reencontrar alguma paz ao recordar estes versos de Fernando Pessoa:
"A terra é feita de Céu
A mentira não tem ninho
Nunca ninguém se perdeu
Tudo é Verdade e Caminho."

quinta-feira, 6 de julho de 2017

O EGO E A BUSCA





Observa a tua experiência e vê o que sucede quando te dás a oportunidade de experimentar a desorientação do buscador espiritual que deixa de procurar uma experiência diferente da que ocorre neste preciso instante. Talvez sintas que o buscador se dissolve e surge a paz, aquela paz que era perseguida pelo buscador.” 
                                                                                                         - Adyashanti


 
Alguém uma vez afirmou que o peixe é a ultima criatura a descobrir a água. Há uma fábula Zen que conta a história de um pequeno peixe que, depois de ter ouvido um discurso sobre a água, se envolve numa busca interminável à procura desse elemento tão precioso. Muitas vezes é o próprio nomear e conceptualizar que gera os problemas que procura resolver. Já me tenho perguntado se haverá alguma forma de falar destas coisas sem que involuntariamente estejamos a alimentar o próprio ego que se pretende dissolver. É muito difícil ler ou ouvir discursos sobre espiritualidade, não-dualidade, paz, vazio, unidade, etc. sem que o ego se aproprie dos conceitos e os converta em novos objetos de busca e de desejo. Daí o perguntar: como posso alcançar, realizar, obter, etc.?

É urgente e fundamental perceber que a demanda por estas coisas jamais poderá ser satisfeita, porque o ego não vai estar lá para as poder experimentar e possuir. O ego é uma entidade fictícia que só surge ou se torna aparente quando há resistência ao que é, a favor de algum ideal. A mente, o individuo, o ego, ou como lhe queiramos chamar, é gerado pela própria resistência e compulsão. Só pode existir enquanto tiver um objetivo que perseguir, um desejo a realizar, alguma coisa que manter ou rejeitar. É por isso que o desejo de nos libertarmos do ego é apenas mais um dos truques que o ego utiliza para sobreviver. A luta e o esforço na dimensão psicológica sempre mantém e fortalece aquilo contra o qual lutamos.

Uma das nossas maiores dificuldades é que não percebemos a natureza ilusória do ego em toda a sua extensão. Podemos reconhecer a futilidade da atividade egocêntrica em busca de prazer, intoxicação, dinheiro, poder, prestigio, reconhecimento, etc., no plano mundano. Mas não percebemos que é a mesma atividade que funciona quando nos viramos para o chamado mundo espiritual e nos envolvemos nas mais diversas atividades a fim de conseguir o passaporte que nos leve ao nirvana ou à iluminação. Não percebemos que é a mesma entidade ilusória que se senta aos pés do guru, devora toda a literatura sagrada e formula todo o tipo de dúvidas e questões a fim de garantir que não comete qualquer erro em direção à meta espiritual. Julgamos este “ego espiritual” dotado de algum tipo de permanência ou superioridade, mas a sua natureza é tão ilusória como aquele ego mundano de que nos quisemos libertar.

E qualquer coisa que queiramos fazer a fim de corrigir esta situação, será sempre mais do mesmo. Toda a ação envolvendo o esforço e a vontade é sempre produto da mesma ilusão. Toda a substituição, todo o abandono do incorreto para abraçar o correto, toda a renúncia com o desejo de ganho, não passam de movimentos no interior da prisão. Quando queremos alcançar, possuir, controlar, reproduzir a experiência da ausência do ego, a mente é o único instrumento de que dispomos. Mas é um instrumento completamente inadequado. Porque a mente é o instrumento da intenção e da vontade. E a intenção e a vontade é a positiva manifestação do ego. O ego é o próprio centro do esforço e da volição. Só um “eu” pode querer acabar com o “eu”.

Então, que fazer?... Nada!... Simplesmente parar, relaxar!... Apenas observar, respirar, escutar, sentir!... E isto não é nenhum "fazer". É apenas o simples funcionamento natural. É isto que sugerem os grandes mestres como sendo a arte da meditação. Uma atitude de plena aceitação em que cessa toda a fuga, toda a luta e resistência e nos permitimos viver plenamente o momento tal como ele se apresenta.

A mente não pode fugir de si mesma! O próprio pensamento é sustentado pelo esforço que o procura eliminar. O jogo da mente é muito subtil, o ego tem uma enorme capacidade de metamorfose. Quando assumimos que temos uma mente doente e confusa e desejamos promover uma transformação, quem é a entidade que deseja promover tal mudança? É essa mesma mente doente e confusa! É a mesma mente e não uma mente diferente. Só há uma mente e está toda ela doente. Não há uma parte sã que vai curar outra parte aleijada. Eis porque o auto-aperfeiçoamento não passa de uma falácia ilusória. É como um cão correndo atrás da própria cauda. A paz e serenidade vem quando reconhecemos a nossa impotência e abandonamos o problema. Se formos verdadeiramente honestos, tudo o que podemos fazer é desistir de todos os nossos intentos e esforços, porque qualquer coisa que esse agente faça permanece dentro da esfera da ilusão.

O verdadeiro despertar acontece quando há um percebimento claro de que tu nada podes fazer para o produzires. A iluminação não é um resultado que possas conseguir em virtude de aplicares o método ou os ingredientes corretos. A transformação não pode ser deliberadamente calculada e produzida. Sucede de forma espontânea, na ausência de qualquer pretenso agente transformador, quando cessa toda a luta e resistência.

A autêntica liberdade significa a completa extinção de toda a necessidade de manipulação e controle. Quando nos confiamos ao colo divino já nada precisamos saber, nada precisamos fazer. A vida é puro gozo, puro fruir. Não é nenhum trabalho, nenhuma corrida de obstáculos, nenhum puzzle que temos de montar. É de uma simplicidade absoluta e magistral. Não é de admirar que a tal "iluminação" ou "despertar" seja tantas vezes associada a uma gargalhada de alivio e prazer!

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Problemas e Percepção


 



A realidade nunca é problemática ao nível da pura percepção. Fora do pensamento nunca há problemas. Há apenas situações, um simples dar-se conta dos dados imediatamente presentes aos sentidos. O problema só surge com  as reações da memória e experiência acumulada, associada ao conhecimento e ao dar nome.

A mente é que foi a criadora do problema e portanto não o pode resolver. O problema não pode ser resolvido no mesmo nível que o criou. Se considerarmos séria e honestamente a hipótese de uma intrínseca disfuncionalidade do pensamento, então teremos de o abordar desde uma perspetiva que se encontra fora das limitações do próprio pensamento. Não mais nos podemos envolver na sua incessante atividade auto-geradora de problemas nem alimentar o seu apetite insaciável por respostas.

Quando renunciamos aos nossos esforços para resolver qualquer problema no limitadíssimo espaço da mente, é como se todo o cosmos participasse da sua resolução. Sem a interferência da mente o problema dissolve-se e desaparece. O fundamental é mantermos um espaço de silêncio e abertura ao imprevisível e desconhecido. Só quando a atenção não está inteiramente capturada pelo pensamento é que podemos ser vulneráveis àquela energia criadora que se encontra além dos limites do conhecimento e do intelecto.

A única forma de não te veres enredado nas armadilhas da mente, consiste na possibilidade de te manteres à tona do pensamento, não permitindo que a atenção seja completamente absorvida pelo arrazoamento mental. Aprende a considerar o pensamento apenas como mais um elemento entre os objetos da experiência. O importante é não atribuir qualquer preponderância à mente sobre quaisquer outros objetos da realidade presente. Não precisamos lutar com os pensamentos nem procurar eliminá-los. Basta canalizarmos para o nível energético e sensorial a energia despendida na atividade mental. É um simples redirecionamento do foco. Renunciamos à mente e ao pensamento e regressamos ao corpo e aos sentidos. Em vez de nos perdermos nos pensamentos, simplesmente nos decidimos a estar atentos e presentes, permitindo-nos ser renovados por aquilo que podemos ver, ouvir, sentir!…  O que isto requer é a atenção e não o pensamento.

Quando a mente se remete ao silêncio e imobilidade total, descobrimos que há uma ação e perceção que acontecem na ausência da mente. Uma ação e percepção totalmente espontânea e livre de esforço, em que há imediata e direta compreensão. Há algo que atua através de nós, que é maior que nós, maior que a mente e livre de todo o condicionamento. É uma dimensão que não pode ser conhecida nem possuída pela mente. Está além de todas as nossas dúvidas e perguntas e da nossa incessante busca por respostas. A ela se referiu Santo Agostinho quando declarou: "Ama et fac quod vis!" (Ama e faz o que quiseres!). Esta realidade nada nos pede. Apenas requer a nossa confiança e humildade. Temos apenas de sair do seu caminho e deixar esta inteligência atuar livremente.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Mente, Consciência e Identidade



A questão da identidade essencial ou indagação em torno da pergunta “O que sou?”, constitui o núcleo à volta do qual gravitam todas as grandes tradições espirituais e religiosas.

Nesta inquirição alguns termos e expressões poderão adquirir significados ligeiramente diferentes em função do contexto e da tradição em que são utilizados. Por isso devemos permitir-nos alguma flexibilidade, evitando uma atitude demasiado rígida na interpretação de certas palavras e expressões.

Quem leu os grandes mestres do Zen-Budismo terá reparado que nesses textos é muitas vezes utilizado o conceito de “grande mente”, “mente essencial”, "mente única" ou “mente original” para se referirem àquilo que constitui a nossa autêntica natureza, a nossa identidade essencial e que os autores Advaita denominam “Consciência”. Ambas as tradições apontam a mesma realidade.

Na maioria dos textos Advaita faz-se uma distinção entre  mente e consciência, que de forma breve podemos clarificar como segue:

Mente – É expressão da experiência individual sob a forma de pensamentos, memórias, desejos e aversões, emoções e sentimentos. É apenas um objeto ou conteúdo da consciência. É resultado do tempo e está sujeita ao jogo da mudança e da impermanência. O "eu" pessoal e fenoménico e aquilo a que chamamos "personalidade" não passa de uma construção fictícia que resulta da nossa identificação com estas formações mentais.

Consciência – É aquilo que constitui a nossa natureza essencial e imutável. É omnipresente e atemporal, impessoal e universal. Não tem quaisquer limites, qualidades ou dimensões.  É informe e vazia, sem qualquer ubicação no tempo ou espaço. Sendo pura subjetividade não pode ser percebida objetivamente. É a realidade última e primeira a que em última instância é redutível todo o fenómeno e experiência. Esta Consciência é o que realmente somos. É aquilo que se encontra por trás da expressão "Eu Sou" ou "Existo".

Esta distinção é importante porque o nosso ser autêntico e essencial, aquilo que realmente somos, não pode ser identificado com nada que seja objeto de percepção ou experiência. A forma como em cada momento pensas, atuas e sentes, apenas reflete o teu estado, não define aquilo que tu és. David Hume, uma importante figura da filosofia ocidental, também se apercebeu disto, o que o levou a negar qualquer realidade substancial ao “eu” individual,  tal como já havia feito o Buda há 2500 anos.
 Quanto a mim, quando penetro mais intimamente naquilo a que chamo eu próprio, tropeço sempre numa ou outra percepção particular, de frio ou calor, de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Nunca consigo apanhar-me a mim próprio, em qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a não ser a percepção.”                                                                        -David Hume, Tratado da Natureza Humana
É importante notar que não existe um "tu" e a "consciência" como coisas separadas. Só existe  consciência e não um tu que é consciente. A consciência não é um atributo. Não são as pessoas que têm consciência, é a consciência que tem pessoas. A aparente existência de um "eu" como entidade separada, não passa de uma sensação ilusória e intermitente. É apenas mais uma manifestação que surge na consciência.
Compreenda que não é o indivíduo que tem consciência, é a consciência que assume inumeráveis formas. Esse algo que nasce ou que morrerá é puramente imaginário.”                                                                               -Nisargadatta Maharaj, I Am That
Os mestres Advaita terão reparado que o nosso verdadeiro ser, a nossa natureza autêntica e original, não pode ser nada de fenoménico nem ter qualquer marco temporal. Terá que estar sempre presente, não é nada que se possa perder ou adquirir e deve estar antes e além da mente e do “eu individual". Aquilo que és não pode ser definido ou formulado positivamente. Não podes dizer o que és, mas apenas aquilo que não és. Daí a expressão “Neti, Neti” (nem isto, nem aquilo), oriunda do antigo sânscrito,  que significa que a verdade do que és, não é nada susceptível de surgir no tempo ou no espaço, nem nada.que possa ser pensado, sentido, conhecido, experimentado ou verbalizado.

Tu és aquilo que resta depois de descartares tudo o que participa do jogo da impermanência. Isto torna inúteis todos os esforços para apreender objetivamente essa realidade última, o ser essencial ou absoluto, já que todas as aparências surgem no campo fenoménico, pertencem ao mundo do tempo e do transitório.  Qualquer coisa que possas conhecer e conceptualizar manifesta-se no plano consciente. E tudo o que surge no plano da consciência é temporário e impermanente. Por isso os budistas o consideram apenas aparente ou ilusório já que tem realidade meramente relativa e dependente. O mundo surge e desaparece com a própria consciência que o percebe. Sem consciência não há mundo.

A própria consciência é a única realidade estável e permanente em meio a todo este fluxo efémero e passageiro que constitui o mundo fenoménico. Paradoxalmente, a tua realidade mais íntima e essencial é algo que jamais poderás conhecer de forma conceptual e jamais poderá ser objeto de percepção ou experiência, pois é aquilo que está na origem de todo o fenómeno e torna possível todo o experimentar. Não podes conhecer o que és, podes apenas sê-lo!

domingo, 19 de julho de 2015

Intelecto vs Atenção



"Só o lago calmo reflete as estrelas"                                                  -provérbio Zen



Ao confiar no intelecto, procurando segurança nas ideias, torno-me cego à realidade. O pensamento isola e separa, quer gire à volta do profano ou do sagrado, do mundano ou do divino. Uma mente ocupada, seja qual for o objeto das suas lucubrações, cria sempre isolamento à sua volta. 
Na medida em que nos ocupamos com o próprio diálogo interior, deixamos de prestar atenção. O espaço dedicado à ruminação é roubado à presença. E ao deixarmos de estar presentes, o condicionamento que jaz ao nivel do subconsciente assume o comando. A ação consciente dá lugar à reação condicionada. As nossas respostas tornam-se mecânicas, comandadas pelos hábitos e padrões instalados.

Só quando estamos plenamente atentos e presentes, se manifesta a consciência livre e descondicionada. Daí resulta uma resposta sempre original e espontânea, porque surge de um estado de disponibilidade e vazio. Esta ação utiliza criativamente o conhecimento e a memória, mas sem estar limitada por eles. O intelecto é conhecimento e move-se no passado; a plena atenção é presença e move-se no desconhecido (o desconhecido é o presente, não o futuro). A presença consciente não exclui o intelecto, mas o intelecto não pode substituir a presença consciente. O pensamento não pode substituir a atenção.  O intelecto é cego e limitado. A consciência é livre, infinitamente aberta e ilimitada. Ao serviço da consciência o intelecto é um instrumento inofensivo; ao pretender substitui-la torna-se cego e destrutivo.

domingo, 11 de maio de 2014

Porque não podemos encontrar a Consciência?



René Magritte  -"Reprodução Interdita"

 "Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro.  Não acredito que eu exista por detrás de mim."  -Fernando Pessoa


Poucas expressões da "não-dualidade" ou do jargão espiritual são mais susceptíveis de confundir ou gerar errónea interpretação do que a sugestão de procedermos a uma rotação no foco da atenção e virá-la para o interior a fim de encontrarmos a sua fonte. Dizem-nos que para acedermos à nossa identidade essencial e conhecermos a natureza autêntica do que somos, devemos proceder a uma rotação de 180º no foco da nossa atenção dirigindo-a do exterior para o interior, dos objetos para a consciência. Quando ouvimos esta indicação podemos cair no erro de procurar ver ou conhecer a consciência do mesmo modo como vemos e conhecemos qualquer objeto da experiência. Procedemos a uma espécie de escrutínio interior em que fazemos desfilar mentalmente o reportório de tudo o que vemos e conhecemos até encontrarmos aquilo a que supostamente tal indicação se refere. Mas este modo de indagar está inevitavelmente condenado ao insucesso e à frustração. Qualquer coisa que possamos conhecer ou experimentar nunca será a consciência, porque a consciência já tem que estar presente antes de qualquer experiência ou conhecimento. Daí que o discurso da "não-dualidade" nos diga que "o buscador já é aquilo que ele busca", "a própria pergunta já é a resposta". Ao referir-se à nossa natureza essencial com palavras como "Ser", "Consciência", "Vazio", "Presença", "Absoluto", etc., o discurso não aponta para alguma coisa que precisamos encontrar, descobrir ou produzir através de algum tipo de atividade ou esforço. Refere-se ao próprio "Ver" e não a algo que tenha que ser visto. A própria formulação de uma questão, independentemente de qualquer resposta, já constitui em si mesma uma perfeita confirmação da presença da consciência.

A dificuldade é criada pela própria estrutura da comunicação verbal. Os nomes e palavras geram uma aparente dualidade e separação sujeito/objeto. Esta é uma inevitabilidade ao nível verbal. Mas a consciência nunca poderá ser objeto de experiência ou conhecimento. Jamais poderá ser convertida em objeto de busca ou indagação. Quem seria a entidade que levaria a cabo tal busca? Quem senão a própria consciência poderá ser já o sujeito desta indagação?  Não podemos estabelecer divisões na consciência. Seria como se a consciência se alienasse de si mesma e andasse em busca de si própria. Percebemos o absurdo desta posição? A forma como inadvertidamente nos enganamos e iludimos a nós próprios? O pleno reconhecimento da consciência não é o fim exitoso de uma qualquer atividade inquiridora. A própria existência dessa atividade, independentemente de qualquer resultado ou conclusão, é já quanto basta para que a presença da consciência esteja perfeitamente estabelecida. É um reconhecimento que não se encontra no fim, mas logo no inicio de qualquer busca ou inquirição. É uma verdade implícita que qualquer manifestação torna evidente. Se eu vejo alguma coisa é porque sou dotado do poder da visão. Mas a própria visão não é algo que eu possa ver.

Perceber a consciência como a essência daquilo que somos é apenas um simples reconhecimento. Não se trata de qualquer realização a alcançar ou qualquer experiência que possamos obter através de esforço, do pensamento ou da imaginação. A consciência não é divisível. É una e não dual.  Se aquela indicação (de dirigir a atenção para a própria atenção ou consciência) se converter para nós num problema, é preferível ignorá-la, pois na verdade não é uma expressão muito feliz. O efeito que ela produz no buscador assemelha-se muitas vezes àquela história  Zen do peixe que ingenuamente percorre o fundo do oceano em busca da água. É por isso que no Zen, andar em busca da nossa essência ou natureza budica, é comparado a procurar um boi montado no boi.

A nossa confusão deve-se aos equívocos provocados pelas palavras e comunicação. Quando te recomendam prestar atenção a tal ou qual som, imagem ou fenómeno, tu simplesmente viras para esse objeto a tua atenção; por isso, quando nos sugerem colocar a atenção na própria atenção, o nosso impulso imediato será procurarmos ver a atenção do mesmo modo. Mas tal propósito é irrealizável. A consciência ou atenção não é conhecida desse modo. O que se pretende é apenas que reconheçamos o facto dessa atenção existir,  a presença implícita da própria consciência, o facto inegável de sermos conscientes. Apenas isso! Esta constatação ou reconhecimento não depende de nenhum estado ou experiência em particular. É o fundo subjacente a toda experiência, estado, fenómeno ou percepção. Não importa que o teu estado seja de confusão ou de clareza, que sejas santo ou pecador, dominado pelo vicio ou pela virtude, visitado por anjos ou demónios, tudo é igualmente uma confirmação da presença da consciência, em si mesma vazia, transparente, incorruptível, imutável e atemporal. A ênfase é colocada não já nos objetos, mas antes nesta espaciosidade infinita e  consciente onde eles aparecem. É tão óbvio, tão simples! Significa o fim de toda a identificação. Eu não sou nenhum objeto, sou a luz que ilumina todos os objetos. Não sou nenhuma experiência, sou a capacidade de experimentar. Não sou feito de nada do que vejo, sinto ou experimento, mas todas estas coisas são feitas de mim, são manifestação e expressão da minha existência. Tal como as dunas são formações de areia. As ondas desfazem-se, a água permanece. Sou aquilo que permite e possibilita que todos os objetos e todas as experiências surjam e desapareçam. Sou a ausência que permite todas as presenças, o vazio que acolhe toda a existência.

Não podemos olhar e conhecer esta consciência do modo explicito e objetivo como tudo é visto e conhecido. Não interessa que a busca seja direcionada para o exterior ou para o interior, o que quer que encontremos nunca será a consciência. Uma lanterna jamais poderá surgir no foco de luz que dela própria emana. Um dedo poderá apontar para qualquer coisa menos para o próprio dedo que aponta. O olho não pode ver-se a si próprio. Uma câmara fotográfica nunca aparece na fotografia, no entanto a fotografia torna evidente a existência da câmara. Nenhum  objeto é a consciência. A consciência, no entanto, é a condição sine-qua-non do aparecimento de qualquer objeto. É uma verdade implícita e auto-evidente, pois mesmo ao pretender negá-la estamos a afirmá-la uma vez mais. A própria existência não pode ser negada sem que exista o autor de tal negação. Foi também isto que Descartes descobriu e procurou expressar no seu "Cogito". Não é possível alguém acreditar seriamente na afirmação "eu não existo", uma vez que terá que existir para produzir tal declaração. A apreensão da própria existência é intuitiva e imediata. A consciência é aquilo que jamais poderás ver ou conhecer objetivamente, mas cuja  realidade é mais evidente e indubitável do que qualquer coisa que possas ver ou conhecer. Tu nunca viste e jamais poderás ver os teus olhos, mas tudo aquilo que vês aponta para a verdade irrefutável da sua existência. Neste sentido podemos dizer que o mundo visível e fenoménico é apenas uma seta que aponta para o invisível. Podes duvidar da realidade de qualquer coisa que vês, mas jamais poderás duvidar da existência dos olhos que veem. A consciência é sempre evidente. A única evidência.

É apenas isto que se pretende fazer notar ao ser-nos sugerido virar a atenção para a própria atenção. Trata-se de um um simples corrigir de uma distração. Um convite a recordarmos a real natureza do que somos. Para que a consciência não mais se veja ofuscada ou absorvida pelas suas diversas manifestações ou expressões. Não faz apelo a qualquer atividade com vista à aquisição de algo que não esteja já presente. Não podemos converter a consciência noutro objeto de busca, uma vez que tanto esse esforço como aquele que o realiza, são eles próprios aparições temporárias e transitórias dentro dessa consciência que, na verdade, sempre somos. Esta presença consciente é que constitui o único elemento imutável e permanente ao longo desse fluxo de percepções intermitentes e passageiras que constitui toda a nossa experiência do mundo e da vida. Apenas Consciência é sinónimo de Realidade. Só a Consciência É. Tudo é feito de Consciência.  E como nos dizem os antigos Upanishades indianos: "Tat Tvam Asi" (Tu És Isso).

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Tu já és aquilo que procuras



“A verdade ou a realidade não pode ser armazenada, não pode ser retida -  não é acumulável. O valor de qualquer intuição, compreensão ou realização só pode estar na eternamente fresca presença do momento. A realização de ontem não vale um pimento, agora está morta,  já perdeu a sua vitalidade. É inútil procurar suster-se ou aferrar-se  a algum insight, compreensão ou realização, porque só no seu movimento existe a possibilidade de que surjam sempre novas e frescas intuições sobre a verdade ou a realidade. A ideia da iluminação ou auto-realização como um único evento, ou como um estado ou experiência permanente ou duradoura, é uma concepção errónea”.                                                                                                            Sailor Bob Adamson

O dilema e a tragédia de quase todos os buscadores é que, depois de terem um "insight" revelador, uma experiência de "despertar", ficam eternamente presos na armadilha de a procurar reproduzir ou capturar ou nela permanecer. O segredo está em não te aferrares a nada, nem mesmo a qualquer experiência de despertar. Abandona a tua memória de experiências, estados e realizações. São apenas cinzas mortas sem qualquer vida ou substância. A memória é apenas distração. A verdade é sempre viva e vibrante. Este momento nunca aconteceu. Nunca nada se repete.  "Jamais voltes ao lugar onde foste feliz!", diz uma canção, "...Nada do que por lá vires será como no passado. Não queiras reacender um lume já apagado."

Não te aferres a quaisquer palavras ou conceitos, a nenhum estado, experiência ou conhecimento, porque ao fazê-lo acabas inevitavelmente por ofuscar a consciência onde todos esses elementos de forma espontânea emergem. Poderás registar as palavras que brotam da claridade e pretendem traduzir a compreensão, mas elas jamais poderão substituir aquela claridade que as fez emergir. Não queiras guardar lembranças através de palavras mortas. Só podes guardar conceitos, não a verdade. O homem pensante não pode captar o homem vivente. É este que integra aquele.

A "coisa" como aparece no pensamento, como é invocada na memória, nada tem a ver com a experiência real, anterior e independente dessa invocação. Aquele que recorda a experiência não é o que a viveu e experimentou. São duas dimensões e duas realidades completamente diferentes e que se excluem mutuamente. A ideia da "coisa" nada tem a ver com a vivência da "coisa" sem ideia. A ideia é colorida pela memória psicológica da dor e do prazer, pelo mecanismo de rejeição e apego, aversão e desejo. Todo este processo é alheio ao sabor da experiência original. Por isso diz Shunryu Suzuki, o mestre Zen, "Tão pronto como vês algo e começas a intelectualizá-lo, aquilo que intelectualizas já não é o que viste!" Claro que não é o que viste! A mente não pode ver nada. O intelecto lida com símbolos e não com a realidade. O pensamento, sendo apenas um subproduto, uma pálida sombra da percepção, jamais a poderá substituir. A mente transporta-te para um mundo ilusório de conflitos, lutas e desejos completamente desnecessários.

Podes invocar a memória de um estado, uma experiência ou um "insight" com a intenção de o reviveres, de o ressuscitares, ou de conseguires a fórmula da sua permanência. Mas repara, quando originalmente essa experiência aconteceu, foi ela resultado de alguma atividade volitiva da tua parte?  Ela sucedeu na sequência de algum esforço deliberado tendo em vista produzi-la? Estava presente a memória de alguma experiência que se procurava ressuscitar? Foi produto ou consecução de algum desejo? Havia alguma intenção de alcançar algo, algum agente ou algum processo envolvido? Não, pois não? Ela surgiu de forma totalmente inesperada, não foi? Aconteceu por si mesma, de forma espontânea, sem qualquer intervenção consciente da tua parte. A verdade é que tu (a atividade do pensamento, do esforço, da volição, do cálculo e do desejo) não estavas aí quando isso sucedeu. A tua pessoa nunca foi necessária. Tu estavas completamente ausente. Então porque queres agora ser um interveniente no processo? Porque te queres tornar agora parte da equação? Não é essa atitude completamente ilógica e insana? Além disso, para quê despender esforço e energia em busca de uma experiência que pela sua própria natureza é efémera e transitória?

Andas em busca de Deus? Da felicidade? Da iluminação? De alguma suprema realização ou compreensão? Esquece tudo isso. As palavras geram uma aparente dualidade, uma aparente separação entre ti e a realidade. São estes conceitos que te impedem de ver que tu já és aquilo que procuras. Tudo está já presente. Nada da tua parte é requerido. Tudo é uma dádiva gratuita da consciência. Não podemos entrar no reino da felicidade, levando connosco a ganância, o apego e a cobiça. Esse reino só permite a entrada a quem se apresenta completamente despido no coração e no espírito. Neste caso a nossa vontade de posse e domínio só pode resultar na morte da galinha dos ovos de ouro. Erramos e perdemos ao procurar conhecer e conquistar. Jamais poderás ter a receita da felicidade, porque no reino da felicidade não entra aquele que sabe a receita e a procura aplicar. A felicidade é uma dádiva gratuita àquele que dela não se quer apropriar. Podes usufruir, mas jamais arrecadar.

Tu não existes como agente autónomo, separado do mistério e da graça divina. És a manifestação perfeita e inseparável desse mistério e dessa graça. És consciência clara, luz imaculada, eternamente presente e imutável. E tu jamais podes perder Isso, jamais podes esquecer Isso ou colocar qualquer distância entre ti e Isso. Porque Isso é o que tu és!  Não podes afastar-te de ti próprio! Jamais podes deixar de ser Isso que tu és! És sempre essa presença consciente, vazia e transparente que torna possível todo o ver e experimentar. Quando julgas que a perdeste ou esqueceste, só podes ter perdido ou esquecido algum conceito, algum estado, memória ou experiência que com ela identificaste. Mas foi apenas um equivoco. O que tu és jamais pode ser perdido ou esquecido. Porque só na presença disto, desta luz imóvel e imutável, é que podem suceder  e desfilar todos os estados transitórios, todas as experiências passageiras, toda a claridade e confusão, todo o lembrar e esquecer. Essa luz é o que tu és! Sempre foste essa luz! Nunca poderás ser outra coisa que não seja essa luz. O que deves valorizar não são as coisas que a consciência percebe mas sim a consciência que percebe as coisas.

Ver isto não é uma questão de aperfeiçoar os conceitos, de encontrar as palavras adequadas, de formular  definições mais perfeitas e rigorosas. O que acontece é que isto não pode ser captado mediante nenhum conceito, nenhum raciocínio, nenhum processo especulativo ou intelectual. Nenhuma ideia poderá jamais substituir o espírito capaz de a conceber.  Deixa de confiar na mente! A mente nada te pode mostrar. Ela apenas te ilude e confunde. Tens apenas de olhar e ver! Não tens de pensar! Ver, experimentar, sentir, escutar, ... antecede todo o pensar e raciocinar. Por mais fiel que seja a reprodução de um lago numa pintura, jamais nela  te poderás banhar. Não podes saciar a sede com a imagem da água. Trata-se de abandonar completamente toda a conceptualização e simplesmente olhar a realidade que está presente além de quaisquer nomes e palavras. É o simples acto intuitivo de apreensão daquilo que está presente na experiência imediata e não requer qualquer raciocínio ou elaboração. Daquilo que está ao dispor de qualquer criança, qualquer analfabeto, qualquer animal. É tão simples e tão óbvio que nos passa completamente despercebido. É como se alguém andasse desesperadamente à procura dos óculos que tem colocados sobre o nariz e que são precisamente o que lhe permite ver e procurar.

Lamentavelmente toda a tentativa de comunicar isto por palavras acaba involuntariamente por pôr em marcha o mecanismo que é necessário suspender para que isto possa ser visto. Porque o acto de percepção imediata da realidade acontece num nível diferente daquele que permite a tradução e interpretação verbal da experiência. Por isso talvez uma criança ou um homem sem instrução estejam em melhores condições de o apreender. Um homem que não aprendeu a ler poderá não entender a ementa dum restaurante, no entanto não verá diminuída a sua capacidade de se alimentar. Mas nem a mais completa e exaustiva das ementas poderá impedir que morra à fome um homem, se ele nada tiver para comer. As coisas não são as palavras que inventamos para as nomear. O símbolo não é a realidade. O ver e experimentar não é função do pensamento ou da atividade intelectual. Esta atividade tem que ser posta de lado para que o ver tenha lugar.

Estamos a apontar para aquilo que é o indicador mais primordial, óbvio, claro e evidente da nossa existência: a presença indubitável da consciência. Nada mais do que isto. Nós somos esta consciência. Ela é tudo o que sempre julgámos que precisávamos de buscar sem nos apercebermos que nunca dela estivemos separados. Só ela representa a realidade última e primeira pois é a condição que precede todo o fenómeno e experiência. Como poderias pensar, sentir ou perceber seja o que for, sem que primeiro esteja presente a consciência que te permite pensar os pensamentos, sentir os sentimentos, perceber e experimentar tudo aquilo que percebes e experimentas?

Aquilo que sempre buscaste é na verdade a única coisa que sempre tiveste!... Porque é aquilo que tu és! Aquilo que sempre foste e jamais deixarás de ser! Nunca serás nada menos e nada mais do que consciência. É só isto o que tens de reconhecer. Nada mais precisas compreender ou alcançar. Tudo o mais não passa de histórias e invenções da mente sem qualquer fundamento ou utilidade. Essas histórias não te podem ajudar, não te podem completar, nada te podem trazer ou acrescentar. Elas apenas te podem distrair do essencial. Tu já és completo, nada precisas buscar. A consciência que já és, é tudo o que precisas ser. É dela que se origina tudo aquilo que buscas e desejas, tudo o que alguma vez poderás almejar, sentir, viver, experimentar. Não precisas de um mapa para caminhar. Tu próprio já és a luz que ilumina o caminho.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Nada precisas resolver

A maioria das publicações sobre a não-dualidade consiste na transcrição de diálogos e exposições orais que emergem de forma espontânea em palestras, encontros (Satsang) ou outras situações. Geralmente são respeitantes à superação de qualquer dificuldade ou obstáculo apresentado por um buscador em particular. As palavras e conceitos que então se utilizam não devem ser erigidos em verdades absolutas com as quais qualquer outra exposição verbal deverá concordar. As palavras e conceitos terão sempre um valor meramente relativo e contextual. Não existe qualquer conhecimento, doutrina ou conclusão definitiva que elas procurem transmitir. A sua finalidade é pragmática. São apenas um instrumento provisório que poderá ser útil para superar uma dificuldade ou esclarecer uma situação em particular. O que se procura é desmascarar o auto-engano, provocar um  despertar ou tomada de consciência das múltiplas formas em que a mente nos procura iludir. 

Nesta jornada de auto-conhecimento e libertação, todas as palavras, todos os conceitos e declarações verbais só poderão ter como destino final o seu próprio abandono e superação. A sua função é meramente instrumental. São como aquelas toalhas de limpeza descartáveis que se jogam no lixo depois de terem cumprido a sua função. A tua própria compreensão da verdade não tem de ser de acordo com as palavras de qualquer mestre, professor, doutrina ou tradição. A verdade e a compreensão não te virão através do esforço por decifrar qualquer dessas declarações, por maior que seja a autoridade ou veneração que concedas ao seu autor. Se a tua vida não está de acordo com as palavras de um livro, é o livro que deves queimar  e não a tua vida, pois é a tua vida que é real. A teoria jamais se poderá sobrepor à experiência, que é a fonte de toda a teoria. As palavras só são significativas quando brotam do contacto direto com a realidade, isto é, quando são expressão do teu próprio entendimento, do teu próprio sentir e experimentar. Não é a verdade que provém das palavras, as palavras é que devem ser submetidas ao julgamento da verdade. Daí a sentença de um antigo filósofo grego: "Indaga as palavras a partir das coisas e não as coisas a partir das palavras!".  

Quando o teu desejo por certeza e segurança te leva ao apego a crenças, símbolos e palavras, confundes os conceitos com a realidade. Passas a exigir que a realidade se ajuste às tuas palavras em vez de ajustares estas à realidade. Entregas-te à construção de um castelo conceptual que te garanta a segurança e certeza de estares na posse da verdade. Mas tal exigência jamais poderá ser satisfeita e constantemente te verás na necessidade de o defender contra o assalto de dúvidas e contradições. Porque as palavras e conceitos não passam de ferramentas limitadas e imperfeitas para representar a realidade. Quando julgas que a compreensão e a verdade poderá provir dos símbolos e do pensamento conceptual, estás a exigir dos conceitos e palavras algo que  eles jamais te poderão dar. O estudo de um mapa não pode substituir a experiência real de pisar o território.

As palavras que se revelaram esclarecedoras num determinado contexto, podem ser completamente disfuncionais num contexto diferente. Além disso como podemos ter a certeza de atribuir às palavras de alguém o mesmo significado  de quem as proferiu? Quanto mais enigmáticas e estranhas te parecerem as expressões que julgas ter de entender, mais te irás esforçar no sentido de as decifrar. Mas quanto mais intensa for esta atividade, maior a confusão em que te verás enredado. Esta ruminação apenas te irá afastar daquilo que é verdadeiramente essencial: permanecer centrado nessa límpida e clara presença consciente onde tudo se origina e a que nada pode ser acrescentado ou subtraído. Tu já és essa presença consciente, sempre perfeita, eternamente brilhante e completa. Nada precisas buscar ou entender. Essa consciência que tu és é tudo o que tens de recordar.

Encontras-te envolvido numa batalha interior procurando conciliar palavras e conceitos? A desatar nós e clarificar significados? A deslindar aparentes paradoxos e contradições? Estás a confundir o mapa com o território. A desperdiçar energia num conflito supérfluo e inútil que nada te poderá beneficiar. O salto para fora da mente não pode acontecer procurando satisfazer as suas intermináveis pretensões e exigências. Tudo o que o pensamento constrói, o pensamento pode destruir. A mente está sempre ocupada em destruir as suas próprias construções, sempre encontra mais uma pergunta para colocar, mais um problema para resolver. Desse jogo depende a sua própria sobrevivência. E entretanto a tua atenção deixa de estar focada no mundo da realidade presente e és arrastado para um mundo virtual e ilusório, meramente conceptual. É como se estivesses a assistir a um Western na TV e te atirasses para debaixo da mesa em busca de proteção dos tiros que acontecem no ecrã, ou te levantasses freneticamente em busca do impermeável e do guarda-chuva quando apenas assistias ao filme "Singing in the rain". A realidade está além da mente, dos seus jogos e dilemas e da sua interminável busca por respostas.

Para qualquer afirmação podemos sempre encontrar um sentido em que é verdadeira e outro em que é falsa, um ponto de vista que a sustenta e outro que a refuta, uma perspetiva que a confirma e outra que a rejeita. A mente alimenta-se deste inevitável dilema verbal. Irá sempre encontrar um problema para cada solução. Mas os paradoxos e contradições só acontecem ao nível conceptual, dizem apenas respeito a símbolos e palavras, não afetam a realidade. O conflito nunca é entre uma verdade e outra verdade, mas entre meras representações da verdade. Os problemas, dúvidas e confusões são sempre respeitantes ao mapa, nunca ao território. A realidade nunca é paradoxal ou contraditória. A realidade é o que é, independentemente das palavras que a pretendam descrever ou traduzir. Nenhuma confirmação lhe pode dar maior solidez e nenhuma refutação a pode beliscar. Um juízo falso pode ser desmontado no confronto com a realidade, mas a realidade jamais poderá ser determinada por qualquer juízo a seu respeito. Tu não tens que desperdiçar a tua energia a resolver problemas que apenas existem para uma entidade fictícia num mundo ilusório e irreal. Nada de fundamental se perde pelo facto de renunciares à luta e ao esforço para apreenderes palavras e conceitos. Tens apenas que despertar para a realidade imediata e presente que se encontra aqui, agora, e é independente de formulação verbal. O que é real é sempre claro e evidente e nunca é problemático ou contraditório porque não é um conceito mental.

Como diz um provérbio Zen : "Se tu compreendes, as coisas são como são; se não compreendes, as coisas são  como são!". De acordo com o célebre mestre Ma-Tsu: "A mente que não compreende é o Buda, não existe outra!". Isto significa que a natureza essencial da consciência que tu és, não pode ser afetada por qualquer dúvida, confusão ou incerteza e não é susceptível de qualquer aperfeiçoamento ou modificação. É sempre perfeita, completa e luminosa. O segredo da conexão com a misteriosa inteligência que rege o  universo tem muito mais a ver com aceitação e confiança do que com luta e resistência.

As palavras e conceitos geram uma separação ilusória.  Elas enganam-te e iludem-te. Então julgas ter que buscar aquilo que sempre tiveste, És como um peixe às voltas no oceano em busca da água onde nada. Tu não estás separado do que julgas andar em busca. O teu ser é uno e não dual. Tu próprio já és a verdade que sempre perseguiste. Nada precisa ser modificado ou melhorado, nenhuma pergunta respondida, nenhum problema precisas resolver. Não tens que lutar contra a confusão ou esforçar-te por buscar clareza. Aquilo que é verdadeiro e essencial não é uma realização a alcançar porque nunca foi perdido.

O discurso do sábio não pretende satisfazer o teu desejo de segurança e de saber, mas antes aniquilá-lo completamente. A busca e o esforço são sempre inúteis pois não existe a entidade que deles possa beneficiar. Não existe nenhum pensador que subsista quando o pensamento desaparece. Nada existe de estável no aparente individuo separado. Toda a atividade egocêntrica em busca de respostas, todo o apego e acumulação, todo o avanço e retrocesso em torno desta figura imaginária, tem a mesma utilidade e consistência de um livro escrito nas águas passageiras de um rio. É como vapor que se dispersa e desaparece. Por isso a busca é inútil e jamais pode ser satisfeita. Porque o ego que ela pretende preencher é totalmente ilusório. Despertar da busca significa simplesmente perceber que o buscador nunca teve existência real. Nunca teve maior consistência que um pensamento.

Não convertas estas palavras num outro problema a resolver. Quem seria a entidade a lutar para o fazer? Não existe o individuo que supostamente iria beneficiar dessa atividade. Repara como o pensamento se encontra às voltas numa luta consigo próprio. Tal luta significa apenas que acreditas na existência de alguém (tu) que a pode travar e que através dela poderá evoluir ou crescer. É essa entidade que tem uma existência meramente fictícia, fantasmagórica. Não tem qualquer estabilidade ou permanência, nenhuma substância ou realidade. Todas as construções do pensamento têm a mesma consistência de figuras desenhadas na areia à beira-mar. São como nuvens dispersas pelo vento. 

Permanece céptico e vigilante em relação ao canto de sereia da mente. Ela constantemente irá procurar atrair a tua atenção e envolver-te na resolução de problemas imaginários para uma entidade imaginária. Não tens que levar a sério as suas invenções. Tudo não passa de uma criação do pensamento. Evita sucumbir à sua sedução. Não permitas que a tua atenção seja absorvida pelos jogos da mente, pelos seus dilemas e sugestões. Permanece ancorado naquela realidade que não é produto da fábrica mental. Dirige a atenção para as sensações presentes no corpo. Através da consciência corporal podes sempre conectar-te com a realidade presente aqui e agora. Escuta o bater do coração, observa o teu próprio respirar, percebe os estímulos sensoriais presentes no ambiente. Não permitas que o riso das crianças e o canto dos pássaros te passem despercebidos. Que a tua atenção seja como o ar que invade uma habitação: que nenhum recanto por mais escondido, que nenhum espaço por mais afastado deixe de por ela ser preenchido. Sente a carícia do sol, a brisa do vento e o chão que pisas ao caminhar. Isto liberta o foco da prisão da mente e traz a atenção para aquilo que é real e presente. Coloca-te sempre num plano superior ao burburinho da mente. A mente é atraída pelas suas próprias construções, mas a consciência observa a própria mente. Cria alguma distância. Não te identifiques. Sê um observador de ti próprio. Nada disto és tu. Nada disto te pertence. És uma ausência plenamente presente.

Questiona a mente, os seus produtos e atividades, por mais atraentes e irresistíveis que eles te possam parecer. Podes sempre abandonar os problemas que ela insiste em te colocar, renunciar às batalhas em que ela te quer envolver. Pergunta a ti mesmo se realmente necessitas da segurança que ela te promete oferecer. Decide-te simplesmente a prescindir das soluções que o pensamento constantemente está ocupado em encontrar. Poderás descobrir que nunca precisaste delas, que a mente apenas te pretende enganar. Somente aquilo que permanece na ausência da mente, aquilo que resiste ao teste do silêncio, é que é real.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Mostra-me o Teu Rosto Original

"Mostra-me o teu verdadeiro rosto, o rosto original que tinhas antes dos teus pais serem nascidos." -Koan Zen
Os outros têm de ti apenas uma representação. Aos outros apareces como objeto. Mas tu, a ti mesmo, vives-te como sujeito. Aquilo que és verdadeiramente é a  vivência subjetiva que tens como sujeito de percepções e experiências. Tu és Aquele que vê e não aquilo que é visto. A tua dimensão como sujeito jamais poderá surgir no campo de percepção do outro. O outro apenas pode vivenciar a sua própria subjetividade que a ti é invisível. Somos todos invisíveis uns para os outros! É só ao nível interior que a realidade ultima é "experienciada", que  contactamos aquilo que constitui a nossa verdadeira natureza, o ser autêntico de cada um de nós.  Em ultima instância apenas a consciência é real, pois a consciência é a condição de toda a experiência.  

A pessoa separada não existe. A sensação de sermos indivíduos separados é ilusória. Origina-se da identificação com o corpo e a história. A pessoa é a experiência; a consciência é a capacidade de experimentar. A consciência não é nenhum atributo individual. É de natureza impessoal e universal. Tu não és diferente de mim. Somos apenas diferentes ondas de um mesmo oceano de existência. Todas as distinções aparentes são emanações de um único campo universal de inteligência. Não existe outra realidade além da consciência única da qual todos participamos. Dessa linha invisível, subjacente a todos esses centros de percepção que emergem como os nossos corpos aparentes. Não existe nada a distinguir e a separar duas gotas de água que se elevam do oceano. E todo o oceano se manifesta em cada gota!